E OS LIVROS NÃO ERAM SÓ LIVROS

BUENOS AIRES, 1939

Ano em que ela nasceu em uma família de acumuladores.

A economia era fundamental em tempos de guerra portanto não jogavam absolutamente nada fora. Seus pais, assim como todas as famílias que viveram na guerra, passaram fome e enfrentavam filas muito grandes para conseguir algo para comer ou vestir. Assim, ela cresceu num mundo onde se acreditava que tudo se guardava para um dia vir a usar.
Mais tarde, quando já podia comprar coisas, ela continuou não jogando nada fora. Não tinha coragem, confessa.

O presente começou a se acumular no passado e as histórias ficaram perdidas e sem espaços na memória para serem lembradas em meio a tantos objetos engavetados.
E porque não começar pelos livros?

As lágrimas encheram seus olhos, e eu senti o quanto foi doloroso para ela escolher o que ficaria e o que sairia da sua vida. Os livros não eram só livros, eram tudo o que ela sentia.
Era como se ela pudesse guardar todas as lembranças neles, e reler, se aproximava um pouco mais do que ela sempre foi.

A maior parte de todos aqueles livros, foram herdados quando criança, de uma senhora que era sua vizinha em Buenos Aires. Livros em francês e espanhol, que ela leu desde a infância até sua adolescência quando já podia comprar seus próprios. Lembrou dos passeios que faziam juntas e na volta de cada um, a senhora sempre pedia que ela fizesse uma "composição tema" do que tinha visto pelo caminho.

Hoje, ela não lembrou do nome da senhora, mas lembrou do sentimento de respeito que carrega no coração, e renovou a gratidão por sua mentora ter aberto um mundo novo para ela e ter ajudado em sua formação.

E assim, durante esses dias que passamos juntas, muitas coisas se foram. Livros, louças, roupas e objetos esquecidos que já não exerciam mais o poder de contar suas lembranças. Ela entendeu que nossos objetos não nos pertencem, e que são o resultado de cada um que já esteve ligado a eles. Entendeu também, que todos esses sentimentos que estavam distantes e esquecidos, agora podem ser guardados no seu coração, e que ninguém vai tirar isso dela.

Vejo que a senhora de Buenos Aires continua inspirando seu mundo quando diz que ser voluntária em um trabalho social com crianças, é tudo o que ela gostaria de fazer na vida agora.
Ela me pediu uma casa com bem menos coisas, que a abrace, e que seja aconchegante e alegre como ela. Uma casa que entre em harmonia com sua história. 

Ela se chama Verônica, e além de ter sido uma grande coordenadora de produção de filmes, para mim, ela sempre foi a mãe do Adrian, meu amigo. E antes de nos encontrarmos para bater esse papo e começarmos um projeto de design de interiores afetivo em sua casa, essas eram as duas únicas coisas que eu sabia dela.

SÃO PAULO, 2020.